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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Tempos antigos com Cora Coralina




Antiguidades

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,                                      
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.
Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica. Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversar
que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava                              
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

Cora Coralina
(1889-1985)



20 comentários:

Caca disse...

Que maravilha este poema! Eu me lembro que quando havia visitas em casa a criançada nem podia chegar perto da mesa. Tinhamos que aguardar para ver se sobrava alguma guloseima para comer só depois que fossem embora. A gente colocava vassoura atras da porta (dizem que era para mandar as visitas embora, rsrs). Abraços. Paz e bem.

Hugo de Oliveira disse...

Bonita história.

abraços

lolipop disse...

Puxa Beth...o poema é lindo, mas fiquei com muita pena dessa menina, sonhando com bolo...o prato vazio...
Carinhos
Bom fim de semana!

pensandoemfamilia disse...

Oi querida

Que belo poemas. Para mim traz lembranças das visitas a tias, com com minha mãe, e os lanches esperados com alegria.
Estas cenas reais de uma época em que a criança não tinha os privilégios (rei) de hoje, mas o excessos do autoritarismo do paternalismo.
Sou fansoca da Cora. Obrigada por compartilhar este poema.
Também adorei a decoração lateral e fui conhecer o blog as imagens.
bjs,
Bom final de semana

Lu Souza Brito disse...

Olá Beth,

Na minha casa também era assim. Tudo regradinho. E como criança tem mais olho que barriga, senhor. Quanta vontade, kkkkkkkk.
Brinco com minha mãe até hoje que nunca mais comerei pé, pescoço e asas de frango. Na minha infância inteira nao lembro de ter comido peito e coxa de frango, só os pedaços nada nobres, ahahaha. Estes eram destinados aos mais velhos e as visitas.
Hoje em dia só como peito, de raiva!kkkkkkkkk
Me vi nessa menina, reclamando o sono e o cheiro de rapé. Ai que em casa ia uma fulaninha assim,de nome Odete!
Quantas recordações de infância tive agora.

Beijos!

Glorinha L de Lion disse...

Que delicadeza de post Betita! As fotos...(olha minhas xícaras com flores aí....rrsrs), o armário antigo...e a poesia de Cora Coralina, que em sua simplicidade diz tudo...tudo tão lindo, delicado como as coisas dos antigamentes...beijos,

Justjanesinsaneblog@blogspot.com disse...

The story, so moving, so beautiful. The childhood longing, so familiar. The photographs of antiques, what can I say, I am blessed to have found so much talent, and I thank you for sharing your gifts with me, here, today. Like the cake in the cupboard, I long to read more!!!

Lúcia Soares disse...

Beth, uma viagem ao passado, o texto de Cora Coralina. A vida era assim mesmo, as crianças eram coadjuvantes da história familiar...rsrsr
Os nomes, então, me remeteram a parentes e amigos de minha mãe. Tinha Dona NháNhá (geralmente era apelido de Maria, e como existiam Marias antigamente!), seu Godô, Donaninha, D. Loló...ah! quanta saudade!
A foto do armário, linda!
Beijos!

welze disse...

sempre é muito bom estar aqui, hoje foi especialmente bom. um abraço

Macá disse...

Beth
Me lembrei de tanta coisa!
Eu peguei uma fase dessas, criança não tinha vez não. Queria dizer alguma coisa e já tinha um adulto pra dizer: Você não fala nada, você é criança! Pode?????
E claro que as coisas eram sempre para as visitas primeiro.
Bom, era assim e pronto né?
Não fiquei marcada com essas coisas não.
beijos e bom final de semana

Heloísa Sérvulo da Cunha disse...

Beth,
Um primor de poema.
E as crianças, eram tratadas assim mesmo. Nada de conversas, nada de vontades.
Bjs.

Nilce disse...

Que delícia de ler este poema Beth.
Parece que estamos vendo todos os personagens, a menina, o bolo, as irmãs e as velhas chatas. hehe
Adorei a foto do armário. Minha avó tinha um igualzinho a este.
Os textos e poemas de Cora Coralina são brilhantes.

Bjs no coração!

Nilce

Unknown disse...

Linda composição.

Beijo e bom fim de semana.

*~* Coisas da Bruxinha *~* disse...

Beth minha linda amiga , e agora eu já posso dizer isso pq vi que vc é linda mesmo rsss.
Em primeiro lugar me desculpe que eu ainda nao enviei as fotos pra vc , a gente sai de ferias e quando voltamos tem tanta coisa pra fazer hehhe, ainda nao coloquei a vida em dia.
Acabei de postar nosso encontro, passa lá pra ver, até que ficamos bem na fita hehhehe.
Se vc quiser que eu te mando por emial as fotos deixa teu email pra mim!!
Foi muito bom te conhecer, adorei e como falei lá no post eu espero que na proxima possamos marcar um encontro direitinho ok!!
Um beijão

Leila

William Garibaldi disse...

Que be-le-za!
Amo Cora Coralina! Amo

Fui ano passado a uma instalação com seus versos no Museu da Lingua Protuguesa... Um primor...
Delicadíssima!
Docíssima!

Luma Rosa disse...

Que tristeza para as crianças! Dormir com vontade e acordar com vontade! Minha mãe foi uma santa!! (rs*)
Beth, não deixa de ir na mostra "Cora Coralina, coração do Brasil" que está no Centro Cultural Banco do Brasil/Centro até dia 13 de Março.
Muitas coisas da casa em Goiás vieram para a exposição! Foi sorte, porque o Rio Vermelho transbordou, a ponte da Casa de Cora foi interditada e a casa quase submersa.
Bom fim de semana! Beijus,

*~* Coisas da Bruxinha *~* disse...

Menina tive que voltar aqui e ler essa poesia , ontem estava tao cansada que já nao ia entender nadinha hehe. A vidas das crianças nao era facil heim, que maldade com elas. Mas ainda bem que nao peguei essa epoca rsss. Meus pais e avos tb pararicavam as visitas e a gente tinha que calar a boca de vez, mas comida nao era racionada , graças a Deus hehhe.
Amiga voltei tb para et agradecer os elogios, rsss ficamos marido e eu envaidecidos com a fama kkkk.

Um beijao

Leila

Teredecorando disse...

Olá Beth,
Que poema bonito!! Nos remete a infância, muitas vezes regrada. Podia até ser sofrida, mas...O respeito era mantido. Os valores eram outros, não é mesmo??
Tudo de bom
Bjs mil

Beth/Lilás disse...

QUERIDOS AMIGOS!

Como sabem, não ouso poetar, isso não é pra mim, mas amo poesias, amo quem sabe juntar pensamentos e palavras e transformar em sentimentos expostos.
Cora Coralina, esta nossa maravilhosa poetisa que lançou seu primeiro livro aos 76 anos tem tanta coisa linda pra ser lida e dividida que, mesmo sabendo que alguns já pudessem ter lido esta poesia, trouxe-a para abrilhantar meu bloguinho.
Obrigada pela participação de todos.
beijos cariocas


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Socorro Melo disse...

Beth,

Quanta riqueza de detalhes, de informações, e sentimentos. E quão observadora foi a Cora Coralina, pra lembrar de tanta coisa inerente às visitas, kkk

Maravilha.

Beijos
Socorro Melo